Quando a água se mistura com sangue

Acarretar água faz parte da rotina diária de milhares de crianças, adolescentes e mulheres em todo o país. Nas zonas rurais, chegam a percorrer quilómetros, na cidade, todos os dias,...

Acarretar água faz parte da rotina diária de milhares de crianças, adolescentes e mulheres em todo o país. Nas zonas rurais, chegam a percorrer quilómetros, na cidade, todos os dias, arriscam a vida no asfalto.

O dia ainda está a amanhecer quando, de entre os becos dos bairros Paraíso e Coelho, em Viana, os primeiros movimentos que se avistam. São crianças e mulheres com baldes e bacias vazios, saem de casa meio estremunhadas e, praticamente em silêncio, até encontrarem o asfalto.

Maria, 15 anos, e Luisinha, de 13, são irmãs e tentam atravessar a estrada principal de Viana, a estrada de Catete, (Robaldina), numa zona em que não há ponte aérea nem passadeira. Em casa, onde a água nunca jorrou das torneiras, deixaram dois irmãos pequenos, os pais foram trabalhar.

Luisinha atravessou parte do asfalto sozinha, só depois Maria, a mais velha, encontrou-a do outro lado da estrada. A agilidade na ida com os recipientes vazios não é a mesma no regresso. No final, têm que levar oito banheiras de água.

“Dividimos a água dessa banheira” (com cerca de 30 litros). Cada uma carrega na cabeça mais ou menos, 15 litros de água, em pelo menos oito vezes que atravessam a estrada e daí, percorrem uma distância de trezentos (300) metros até casa.

Maria e Luisinha de balde cheio na cabeça, esperam uns 4 minutos até terem uma “vaga” para atravessar a estrada. Em média levam 25 minutos, do local onde vão buscar água até casa, um tempo que varia em função das paragens para atravessar a estrada ou mesmo para descansar. Ao fim de três horas a acarretar água, as estudantes da 9ª e 5ª classes, concluem esta tarefa e iniciam outras, também domésticas.

Uma anciã que estava por perto e reside no lado A, da Robaldina, conta que as mortes na estrada têm sido frequentes e que ela já presenciou dois acidentes que resultaram em morte e  “outro caso que resultou em lesão grave de uma senhora. Os filhos dela até hoje, não acarretam mais água no bairro Jindungo (lado B), agora compram os bidões em motorizadas (100/150 kwanzas por bidão de 20 litros)”.

Manhãs que “são sempre assim”

No Kalawenda, um bairro do Cazenga, onde raramente se avista alguém com  máscara, os carros de mão, bidões amarelos e banheiras na cabeça, compõem o retrato matinal.

Deolinda e as irmãs, por exemplo, têm de acarretar água em “ruas distantes”. Dizem ter torneiras em casa, “mas desde o princípio do ano que não passa água no bairro”.

Em Cacuaco, no início de Junho, um acidente que chegou a ser noticiado na rádio, dava conta que entre as vítimas colhidas nas passadeiras, algumas mortais, encontravam-se crianças e mulheres que acarretavam água.

Em finais de Maio, o Mosaiko voltou a questionar num fórum em rede social, se havia água em casa, pedindo que as pessoas respondessem em que localidade e há quanto tempo faltava água. Apenas 30 pessoas interagiram desta vez, mas concluiu-se que em 20 localidades de Luanda não há água com variações de tempo que vão de um mês até 20 anos sem água.

Além de Luanda, internautas que se encontravam em Saurimo, Lunda Sul, Lobito, Benguela, Golungo Alto, Kwanza Norte, reportaram desde quatro meses até seis anos sem água.

Em todas as localidades a rotina diária de crianças e mulheres provam que água ainda não é um direito em Angola e por isso, coloca-se em risco a vida  e o desenvolvimento presente e futuro do país.

Apoio: Norwegian Church Aid

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