A actual pandemia decretada pela OMS em Março passado demonstra o quão frágeis são, de facto, as bases em que estão firmados os direitos, até aqui, defendidos como fundamentais. Há ideias que de repente são tidas não só como normais, mas como avançadas.
Em países como a China, por exemplo, há aplicações que detectam infectados, onde andam, o que fazem… Assim, qualquer cidadão, antes de sair de casa, vê quantos infectados estão a circular no seu bairro podendo, desta forma, evitá-los no seu trajecto.
Em Espanha, Suíça, Reino Unido e Polónia já aprovaram a vigilância dos movimentos dos cidadãos através de dados das operadoras de telecomunicações. Este controlo, admitem alguns destes países, serve para vigiar o nível de cumprimento da contenção social.
Em Angola, a ministra da Saúde, Silvia Lutucuta, admitiu o uso de um sistema de rastreio telefónico que permite saber onde as pessoas, que na altura cumpriam quarentena domiciliar, se encontravam. Este dado foi divulgado em conferência de imprensa no dia 21 de Março passado, dias antes da declaração do Estado de Emergência.
Estes casos reflectem como alguns direitos humanos, durante esta pandemia, tornaram-se justificadamente contornáveis. Pela protecção de todos, sacrificam-se os direitos de alguns, mas a seguir esta lógica, não levará a que certas violações sejam normalizadas?
Partilha e divulgação de dados pessoais
Tão logo os primeiros casos foram divulgados no nosso país, começaram a circular, nas redes sociais, resultados de testes médicos e fotografias dos dois primeiros cidadãos diagnosticados com COVID-19. Além disso, circulou uma lista de contactos com nome, número de telefone e morada de cerca de 500 cidadãos que viajaram para o exterior do país.
Estas acções violam o Direito à Privacidade num sentido amplo, e restrito, o direito de reserva sobre a intimidade e a vida privada, nos termos do artigo 32.º/nº1 da Constituição da República de Angola, que reconhece os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à nacionalidade, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva de intimidade da vida familiar.
O estado de saúde e a localização pertencem à esfera da vida privada ou íntima de qualquer pessoa. Por outro lado, revelar estes dados pode colocá-los em situação de perigo, tornando-os identificáveis e localizáveis. Ninguém tem o direito de os tornar públicos sem o seu consentimento, antes e, de acordo com artigo 80.º nº 1 do Código Civil, todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem.
Os dados pessoais são também protegidos pelo Decreto Lei 22/11 de 17 de Junho, Lei da Protecção de Dados Pessoais que regula o tratamento de dados pessoais efectuados por qualquer pessoa e entidade do sector público, privado e cooperativo, a fim de garantir o respeito pelas liberdades públicas e os direitos e garantias fundamentais das pessoas singulares.
Os profissionais de saúde são obrigados a obedecer o dever de sigilo dos dados pessoais das pessoas infectadas e afectadas, mesmo após o termo das suas funções. A violação do dever do sigilo profissional cometido por funcionários públicos é condenável com pena de prisão ou multa. E segundo o artigo 59.º do Decreto Lei 22/1, os cidadãos que, tendo acesso a dados pessoais, os revelam, colocando em perigo a vida privada do titular, são também condenados.
Devia ser de senso comum que as pessoas infectadas pela COVID-19 devem ser tratadas como nós gostaríamos de ser tratados. O comunicado de imprensa sobre a resposta eficaz ao novo Coronavírus em África da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos orienta que os Estados devem adoptar medidas para combater a COVID-19 que não levem à discriminação e estigmatização. Devem garantir que as pessoas infectadas pelo vírus e as pessoas provenientes de países com maior disseminação do vírus sejam tratadas com dignidade e que não estejam sujeitas a ataques e tratamentos discriminatórios.
Djamila Ferreira, advogada-estagiária