PLANO CAUTELOSO DE COMBATE À COVID-19 EM ANGOLA

COVID-19

Plano cauteloso Covid-19 em Angola

Foto: Jornal de Angola

Primeiro, os países da Europa, Ásia e das Américas com recursos humanos e infra-estruturais para fazer quarentena institucional em grande escala, sistemas de saúde com capacidade para responder à emergência médica e potencial económico para aumentar a dívida pública, poderão debater as virtudes de determinadas estratégias, tanto em termos de vidas poupadas, bem como em termos económicos.

Em Angola, a única opção sensata é a de investir dinheiro no princípio da epidemia e ter a coragem de aplicar medidas de contenção de casos através do controlo estratégico de movimentos populacionais, informados por uma política alargada de testagem.

Se Angola viver uma epidemia descontrolada, vidas humanas serão perdidas e quando passar, a economia estará de rastos. O país perderá quadros valiosos. O rating no mercado internacional será péssimo e, como membro de OPEC, Angola é obrigada a aplicar cortes na produção de petróleo.

Se aplicar medidas de contenção de movimento da população por igual, em todo território, sem aplicar uma política de testagem alargada que poderá melhor informar onde e por quanto tempo limitar o movimento da população, milhões de Angolanos perderão os seus meios de subsistência.

Cautela obriga assumir transmissão comunitária

Para salvaguardar os interesses de todos, somos obrigados a pressupor que há transmissão comunitária, sobretudo na Província de Luanda.

Assim sendo e, até prova em contrário, devem ser aplicadas medidas específicas de contenção de movimentos da população, informada por um programa alargado de testagem e mapeamento de casos passivos e activos dentro das comunidades, a fim de se poder decidir onde restringir os movimentos em todo território nacional, por medida igual, necessário caso não se implemente um programa adequado de testagem.

No entanto se se mantém, ainda que sem evidências, a ideia de que não há transmissão comunitária e se continua a testar somente os grupos de risco e doentes e se se permitir que as medidas de contenção de movimento de pessoas sejam suspensas antecipadamente, no caso de existir transmissão comunitária, Angola não terá como voltar atrás a fim de controlar a  epidemia. Só no princípio é que é possível controlar as epidemias quando ainda se verificam poucos casos.

Agora é a oportunidade única para poder, pois viu-se com clareza em países com muito mais recursos que Angola, que o vírus não é sujeito a ideologias nem a interesses políticos e/ou económicos.

Planear em função dos possíveis cenários

Planear face a um inimigo desconhecido que é o novo coronavírus acarreta, inevitavelmente, um elemento de incerteza. Até ao momento, não se sabe qual será a taxa de infectividade (R0) em Angola. Contudo, parece ser evidente que a densidade populacional e as condições de saneamento em zonas urbanas como Luanda, oferecem cenário ideais para a replicação e transmissão do vírus.

Cenário aparente de planeamento:  Com base nas declarações da ministra da Saúde, sabe-se que o Executivo antevê que o pico de casos acontecerá à medida que as temperaturas baixarem, no tempo de cacimbo. Com base nesta projecção, o Executivo informou sobre a criação de capacidade de resposta médica hospitalar para tratar até 2000 casos graves.

Mas existem outros elementos que merecem consideração, nomeadamente:

a. Pensa-se num único surto grande ou em vários surtos com menor dimensão?

PWC

b. Antecipa-se um maior número de casos em zonas urbanas?  

c. Se projectar a necessidade de cuidados especializados para 2000 doentes com quadro clínico severo e grave, pode-se projectar um total de 10,000 casos positivos. O cálculo é feito com base na experiência da China[1].

d. Há previsão de identificar, testar, isolar e tratar os casos com sintomatologia leve?

e. Os municípios e as províncias foram orientados para assegurar os serviços de rotina de cuidados primários de saúde no decorrer dos próximos meses?

f. Qual o plano específico de contingência para garantir os recursos humanos necessários e como está  prevista a sua distribuição pelos cuidados hospitalares e cuidados primários de saúde, caso se enfrente uma epidemia da dimensão aparentemente projectada?

g. A cadeia de abastecimento de medicamentos e consumíveis médicos foi planeada e dimensionada para os cuidados de urgência e os cuidados de rotina?

 

Planear para que a cura não seja pior que a doença

1. Comunicar os planos e as intenções para preparar melhor a população: As conferências de imprensa da Comissão Coordenadora de Combate à COVID-19, resume-se à divulgação do número de casos e à transmissão da mensagem de que “está tudo sob controlo”. Contudo, a população que vive do sector informal e do sector empresarial formal precisam saber quais as previsões do Executivo para o cenário previsto de 2000 casos que necessitam de cuidados especializados e de 10.000 casos totais. E no caso de ocorrer um imprevisto, com menos casos ou mais, quais as decisões previstas?

É importante notar que de um modo geral, quem toma as decisões é funcionário público, é sujeito a ameaça de contágio, mas o seu salário é protegido.  A maioria da população que vive de rendimento precário corre um maior risco de vulnerabilidade devido à falta de rendimento por tempo prolongado do que vir a morrer de COVID-19.  Os proprietários e empregados das pequenas e médias empresas também correm maior risco de perder os seus rendimentos por um período prolongado ou de forma definitiva.

2. Política de testagem: é verdade que Angola não possui uma rede de laboratórios com capacidade para fazer os testes de COVID-19 neste preciso momento. Contudo, mesmo sem a ameaça deste vírus, o país precisaria de alargar a rede nacional de laboratórios.  O Ministério de Saúde informou que 15 províncias terão, em breve, a capacidade de fazer os testes moleculares que permitem o diagnóstico de coronavírus na fase inicial de infecção.

Falou-se também, na compra e a validação de testes rápidos que detectam os anticorpos, mas a previsão de uso de testes rápidos não foi explicada.

3. Restringir movimentos de pessoas: Qual o cenário previsto pelo Executivo, em termos de limitação de movimentos intra e inter-provincial?

a. Pretende-se ou não aguardar a confirmação da transmissão comunitária do coronavírus, antes de tomar decisões sobre a limitação de movimento de pessoas?

b. As medidas continuarão a ser aplicadas em todo o território nacional, de forma igual ou prevê-se determinar zonas de transmissão de coronavírus para melhor definir o cerco e os movimentos da população? 

c. Qual o plano para criar condições adequadas e sustentáveis de saneamento nos mercados principais e nas escolas em preparação para um combate duradouro à transmissão deste vírus como de outras viroses e doenças endémicas?

d. Determinados países solicitam às pessoas idosas e pessoas com doenças crónicas para praticarem o auto-isolamento, ficando dentro de casa afim de reduzir a demanda por cuidados hospitalares especializados.

4. Província de Luanda – caso especial:  No caso de confirmar casos positivos com sintomatologia leve dentro das comunidades de Luanda, será necessário desenvolver uma política e estratégias que facilitem a execução e impeçam o movimento não controlado de pessoas de Luanda para outras partes do país. Outras medidas desejáveis são:

a. O mapeamento de casos por bairro (não somente por distrito), para saber melhor onde restringir os movimentos de pessoas. É possível que não seja necessário decretar um “lockdown” em todas áreas de Luanda.

b. Vigilância de óbitos em todos os cemitérios de Luanda a fim de identificar qualquer aumento súbito de mortalidade.

c. Organizar um programa massivo de distribuição de alimentos da cesta básica.  É amplamente demonstrado, pela cobertura das acções de distribuição, organizados pelas administrações municipais nos bairros de Luanda que as estruturas do Estado não têm experiência em matéria de distribuição de alimentos de forma criteriosa.

Pelo que se propõe que seja criado um Grupo Coordenador, incluindo técnicos que já trabalharam com o Programa Alimentar Mundial, MINARS e demais organizações que estiveram envolvidas na distribuição de bens essenciais e alimentos, num passado recente nas Ajudas Humanitárias em Angola.

O Grupo Coordenador deverá elaborar um protocolo de trabalho a ser implementado pelas administrações municipais. O protocolo orientará sobre os seguintes elementos (a lista a seguir não é exclusiva):

  • Lista padronizada de itens com custos;
  • Periodicidade de distribuição;
  • Critérios para inclusão no programa;
  • Termos de Referência para as entidades que se candidatem à distribuição;
  • Termos de Referência para as entidades fiscalizadoras de distribuição.

5. Políticas para manter a circulação de bens essenciais e comida: o cenário cauteloso implica planear num horizonte de meses, não de semanas. Assim, as políticas de comércio, agricultura e indústria deverão prever como manter em funcionamento as actividades produtivas e comerciais que são essenciais, no presente contexto de limitação de circulação de pessoas. O alargamento do programa de testagem será prioritário afim de facilitar a elaboração e a revisão de planos em função do controlo de casos.

6. Serviços de Saúde:  não é possível suspender os serviços rotineiros de saúde. Os Angolanos não vão parar de adoecer de malária e outras infecções respiratórias, de precisar de medicamentos para tuberculose, VIH, diabetes e hipertensão.  Os princípios básicos a ter em conta, com base nos conhecimentos de momento, parecem ser os seguintes:

a. Separar os fluxos de trabalho no sentido de assegurar que os serviços de resposta à COVID-19 sejam separados dos demais serviços;

b. Nas unidades sanitárias que prestam serviços de rotina, assegurar fluxos separados de atendimento para:

  • Doentes crónicos que fazem consultas de rotina. Fluxos separados significam que o atendimento médico, os serviços de laboratório e de farmácia ocorrem em espaços ou unidades dedicadas;
  • Os serviços de rotina de atendimento pré-natal, o atendimento à criança e vacinas devem continuar a funcionar normalmente, para prevenir o surgimento de surtos de pólio, sarampo e febre amarela.

c. Nos serviços de urgência ou de atendimento médico externo, o fluxo de atendimento de pessoas com febres e sintomas respiratórios deverá ser separado. Ao pessoal que atende nas urgências, deverá ser fornecido o devido equipamento descartável de proteção pessoal. Os doentes com sintomas sugestivos de COVID-19, deverão ser separados dos demais doentes e fornecidas máscaras;

d. Todas as unidades sanitárias deverão ser abastecidas com os medicamentos essenciais e os testes rápidos para malária. A primeira patologia a ser descartada quando um paciente se apresente com febres, fadiga e dores musculares é a malária. Se não pudermos descartar ou confirmar a malária, no primeiro ponto de contacto, corre-se o risco que os serviços de saúde se tornem focos de infecção de COVID-19;

e. No caso de se confirmar a transmissão comunitária de Coronavírus em Luanda ou noutro sítio e de manter a previsão dum número significativo de casos, será necessário:

  • Reduzir o número de unidades sanitárias que são abertas e assegurar que estas unidades trabalham 24 sobre 24 horas;
  • Assegurar que todas unidades que serão operacionais, num contexto dum surto de casos de coronavírus, tenham condições adequadas de abastecimento de água e energia e condições para que o pessoal de saúde tome banho após o turno de trabalho e antes de regressar para casa de família;
  • Assegurar uma política sustentável de organização de turnos e equipas de trabalho de maneira a proteger os profissionais de saúde e as suas famílias e continuar a prestar os serviços à população em condições adequadas de biossegurança.

7. Processamento de dados: assegurar os recursos necessários para a recolha e o processamento de dados em tempo real.  No contexto de uma epidemia, o acesso a dados em tempo real é essencial para facilitar a tomada de decisão.

8. Movimentos de funcionários públicos e responsáveis: As regras de limitação de movimento de pessoas quando não sejam necessárias, aplicam-se a todos, incluindo ao aparelho de Estado. A movimentação de equipas do nível nacional para “verificar” medidas tomadas ao nível das províncias é desnecessária.   A fiscalização de execução das políticas do Estado é e deve ser da responsabilidade do Governo da Província.

9. Convencer a população sobre as medidas que sejam necessárias: É de extrema importância que as mensagens oficiais tenham uma única fonte e que o conteúdo técnico e a linguagem sejam correctos. Winston Churchill, na altura que a Grã-Bretanha fez uma declaração de guerra, em péssimas condições de preparação, no início da Segunda Guerra Mundial, disse que as características mais importantes dos dirigentes e líderes, no momento de crise, são as de serem capazes de não mentir a eles próprios e nem à Nação. À luz das informações disponíveis presentemente em Angola, não é possível afirmar que a epidemia esteja controlada. Todos nós queremos que esteja controlada. Contudo, se for preciso manter as medidas de controlo de movimento da população por um período prolongado, tem que haver um debate mais aberto e inclusivo sobre como mitigar o efeito das medidas na população mais vulnerável.

10. Polícia: Há debate em várias redes sociais sobre as medidas de protecção para os agentes da polícia que se encontram na linha da frente para a execução das medidas de contenção. A minha opinião é a seguinte:

a. Distribuir máscaras para os agentes da polícia, terão que ser descartáveis e em número suficiente para serem trocadas, pelo menos, de 4 em 4 horas. Para usar máscaras com segurança, o agente da polícia deverá ter condições para lavar regularmente as mãos;

b. A medida mais importante parece-me garantir condições de saneamento e higiene nos postos e nas esquadras da polícia. No caso de ocorrer a transmissão comunitária de coronavírus, as condições mínimas para o agente da polícia são:

  • Ter roupa de trabalho e roupa de casa;
  • Ter condições nos postos e esquadras da Polícia para tomar banho e mudar de roupa antes de regressar para casa de família.

Sou de opinião que a ameaça de coronavírus apresenta uma oportunidade ímpar para dotar os mercados, as esquadras da Polícia e as escolas com as condições mínimas de saneamento. Deve-se aproveitar a presente situação de risco para melhorar o cotidiano do trabalhador do sector informal, do agente da polícia, dos alunos e professores nas escolas, e assim, mitigar as condições de risco para todos. O risco de contágio para a sociedade é quão grande como o elo mais fraco do colectivo.

Por: Mary Daly, médica especializada em Cuidados Primários de Saúde.


[1] Chinese center for Disease Control and Prevention reportou 72,314 doentes com COVID-19, dos quais 81.4% com sintomas leves, 13.9% com sintomas severas e 4.7% em estado critico.

Artigos relacionados
Arquivo
Construindo Cidadania 691 – Ilícito de mera ordenação social, transgressões administrativas e infracção de trânsito