VII Semana Social: Discutir o que é de todas e todos

Foram três dias de intensas discussões, em que perto de 300 pessoas de 19 a 21 de Julho, em Luanda, analisaram os níveis de participação local e global com palestrantes...

Foram três dias de intensas discussões, em que perto de 300 pessoas de 19 a 21 de Julho, em Luanda, analisaram os níveis de participação local e global com palestrantes de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Brasil e França.

Quando um pouco por todo o mundo o fecho e esvaziamento cada vez maior dos espaços de participação dos cidadãos e cidadãs é real. Importa então criar encontros para analisar as causas, identificadas as barreiras, encontrar ideias para mudar o paradigma e sair de um passado/presente descrito por frei Júlio Candeeiro, director geral do Mosaiko|Instituto para a Cidadania, na abertura da VII edição da Semana Social com o tema Participação Local, Mudança Global: “Não havia espaço para a ideia de que nós, povo, somos donos de nós próprios”.

Na primeira conferência com o teólogo da libertação, Leonardo Boff,os participantes sentiram a urgência de instituir uma nova ética, fundada no cuidado pelos oprimidos, como garantia de preservação da vida na Terra. O clamor de Boff soa num deserto hegemónico, resistente a ideias que contrariem ou periguem o status quo. Contudo, para a maioria dos participantes, habituada a ideias mais conservadoras e elitistas, Boff é tido como polémico, mas sobretudo uma incontornável referência de verticalidade moral e política, na medida em que relembrou que “quem hoje detém o poder sente-se facilmente fragilizado pelos oprimidos conscientes e apavorado pelos que agem de acordo com a consciência porque não têm nada a perder”.

A activista pelas mulheres, Delma Monteiro e o agrónomo e líder de opinião, Fernando Pacheco, dissertaram na conferência designada: “Xê menino não fala política” que desde logo, posicionou as intervenções de Pacheco e Monteiro, entre o percurso histórico e as convulsões actuais originadas pela ausência de conciliação no passado.

Para Fernando Pacheco a participação é um dos grandes desafios para os Angolanos, particularmente para a juventude. Num espaço público cada vez mais condicionado e reduzido à submissão, em que vozes divergentes são coarctadas, assim como, a riqueza da diversidade política, social e cultural, sob pretexto de preservar a estabilidade e a ordem.  

E como caminhos, Pacheco aponta três desafios: um pacto social que envolva toda a sociedade, obtendo consensos para a resolução dos problemas que afectam o país; Realizar o poder local, além das autarquias locais, incluir as autoridades tradicionais e as organizações da sociedade civil; E dar vida aos municípios, promovendo projectos de desenvolvimento baseados na solidariedade e bem-comum.

Já Delma Monteiro destacou o que chamou de herança do medo. Desde o massacre de 27 de Maio de 1977, à repressão nas manifestações que se iniciaram no pós-primavera árabe até aos dias de hoje, vive-se uma cultura de medo enraizada, transversal e presente em toda a sociedade angolana e em todos os estratos sociais. Hoje a célebre frase: “Xê menino não fala política”, continua a ser dita em surdina como ameaça, perante qualquer manifestação contrária ao instituído.

E se a participação dos homens é condicionada pela herança histórica, para as mulheres e meninas contribui para a fraca participação, o incumprimento da agenda internacional, protocolos, acordos e convenções assinados que Monteiro considerou que são apenas actos políticos que não chegam a ser materializados em políticas públicas. Além disso, as tarefas de cuidado por continuarem a privar as mulheres de uma participação cívica e pública, como também, as relações de poder desequilibradas em todos os contextos família, escola e igreja. O insuficiente acesso à escola, a oportunidades de carreira ou até a insegurança nas ruas, são ainda factores que limitam a participação da mulher.

Participação e poder

Dionísio da Fonseca, ministro da Administração e Território, elencou os mecanismos que na sua perspectiva, garantem a participação dos cidadãos. Contudo, questionou se na prática alguns mecanismos existentes são efectivos e apontou como exemplo, o Programa Integrado de Combate à Pobreza com incidência municipal, ressalvando que cada administração municipal recebe mensalmente, 28 milhões de Kwanzas para implementar projectos e que nenhum plano anual é aprovado sem a acta de auscultação da comunidade.

Para o governante que está à frente de um ministério com a responsabilidade de coordenar o Programa de Participação na Governação, assim como, os Programas de Cidadania, a participação na governação local é garantida desde 2020, através do Orçamento Participativo, dos fóruns de recolha de contribuições e do Orçamento do munícipe. Além disso, destacou os conselhos de auscultação das comunidades enquanto plataformas que visam promover a participação dos munícipes nas questões de desenvolvimento económico e social das províncias, municípios, distritos urbanos e comunas.

O rei das Lunda Norte e Sul, Mwatchissengue José Estevão, que partilhou a conferência sobre “Participação e poder” com o ministro da Administração e Território, ressalvou a necessidade de integrar o poder tradicional como mediador das comunidades para facilitar o diálogo e mobilizar os cidadãos para a participação. Sem esquecer a realidade recorrente dos momentos de consulta em que os cidadãos comparecem para discutir ideias, mas conforme denunciou o rei das Lundas, são ultrapassados por decisões já tomadas sem que tenham sido previamente auscultados.

Além de ouvir, Mwatchissengue defendeu a necessidade dos responsáveis públicos se deslocarem até às localidades para que o contacto com as comunidades, permita que os programas públicos tenham sucesso, uma vez que se repetem os exemplos em que os cidadãos, sobretudo porque vivem em zonas mais longínquas, sem acesso à informação e por outra, são estabelecidos critérios de acesso aos programas públicos como o de ter bilhete de identidade e ainda existe uma significativa camada da população, sobretudo mulheres que não têm existência formal, logo estão excluídas de qualquer benefício público.

Economia e participação

A conferência sobre “O peso da economia real na participação” contou com três painelistas com visões distintas, para o economista Yuri Kixina, é preciso, primeiro, definir o tipo de Estado para que Angola tenha uma economia próspera. Colocando a sua reflexão entre dois pólos um de forte presença do Estado, com uma economia dependente do governo que, segundo Kixina propicia o populismo, bajulismo e protecionismo. E outra, que considerou mais aberta ao talento individual, uma economia livre, onde a inciativa privada desenvolve a economia e torna prósperas as famílias e é capaz de produzir milionários jovens aos 20 anos.

Já a professora Graça Sanches defendeu que é preciso desenvolver uma economia inteligente que acaba com as barreiras que aumentam o fosso de género que é medido pelo acesso a bens, serviços e instituições que são cruciais para determinar o nível de desenvolvimento quer social,  económico, político e cultural. Sanches crê que esta construção social é reversível e que o acesso deve ser garantido pelo Estado, uma vez que sem superar as disparidades económicas entre homens e mulheres, não há participação e muito menos, desenvolvimento sustentável.

O ponto de partida do politólogo Sérgio Calundungo foi questionar se a condição económica das pessoas é um obstáculo ou motor para a participação cívica? Ou até que ponto a falta de participação cívica cria  fracas condições económicas? Calundungo reflectiu sobre o papel das instituições para aligeirar a vida, para que mais pessoas participem e o poder que determina as dinâmicas dos espaços de participação criados. Por outro lado, notou que há mudança de paradigma sempre que os mais vulneráveis tomam consciência da sua condição e agem. “Quando os debaixo já não aceitam, os de cima não podem e as coisas mudam de lugar”.

Participação na igreja

Com o teólogo Hervé Legrand entendeu-se como o regresso à sinodalidade desafia a igreja actual a ter outro tipo de governo e não o que reserva ao clero o monopólio de todas as decisões. Assim sendo, preparar o sínodo este ano é, na opinião de Legrand, uma novidade absoluta, num contexto eclesial em que a informação é sempre divulgada de cima para baixo, sem qualquer mecanismo previsto que assegure que a informação circule de baixo para cima.

Além de ter elencado os efeitos nefastos de uma governação eclesial centralizada, Legrand estabeleceu cinco paralelos entre a vida sinodal e a vida cívica: a liberdade de informação – pressupõe informar sobre o estado da igreja, os desafios, os recursos humanos, ministeriais e financeiros; A liberdade de expressão contribuindo para a formação da opinião pública católica; Negociar e respeitar o ponto de vista das minorias, participar na criação das leis; E a busca do bem-comum através da sinodalidade como suporte à procura da responsabilidade comum pela criação e pela ecologia.

Perspectiva africana da participação

O sociólogo Elísio Macamo encerrou a Semana Social, expondo uma perspectiva africana de participação adiada, na medida em que o projecto de independência ainda está por realizar nos países africanos. Perante realidades comuns, entre Angola e Moçambique, países independentes, mas sem sistema, o que fazer para recuperar o sistema? O que se fez desde que se proclamou a independência, mostra o que é a liberdade?

Macamo defendeu que começa pelo desejo de todos em confiar em quem governa por respeitar a constituição, os impostos de todos, os direitos, mas perante a ausência de confiança em quem governa, a questão que o sociólogo levantou é como reganhar essa confiança? “O poder para ser poder, tem que partir da ideia de que quem o exerce fá-lo como acto de generosidade conferida. Ter poder é gerir expectativas, a noção de o ter é escorregadio como a pele de uma serpente”.

E voltando à questão sobre quanto custou a liberdade? Macamo concluiu, frisando que é preciso saber reconhecer o valor da cidadania. “Participar, recuperando o projecto da independência, trazer de volta o sistema que não existe. Criar condições para o exercício da cidadania, a expressão mais alta da liberdade como o reconhecimento da dignidade humana. Participar porque essa é a condição para uma Angola, Moçambique, África e mundo melhores”. 

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Construindo Cidadania 691 – Ilícito de mera ordenação social, transgressões administrativas e infracção de trânsito